A pessoa que mente muitas vezes o faz para alguém, e pode ser para alguém que também mente a si mesmo, por preferir a ilusão à verdade. São os pactos que são realizados de forma inconsciente entre os casais para manter a modalidade de relação; nas famílias, para ocultar fatos vergonhosos ou traumáticos; nas empresas, para garantir sua estabilidade; nas sociedades, para manter o status quo. São omissões, segredos, mitos.
O desprezo e a raiva à verdade emergem com força quando a desilusão ameaça o equilíbrio das relações. Se somos seres que mentem, quando as máscaras caem ficamos todos muito parecidos. Temos medo de ver refletido no espelho nossa cabeça de Medusa.
Por outro lado, são muitos os danos creditados às inverdades e omissões: os segredos familiares levam muitos membros à psicoterapia, e a desilusão pode ser semelhante a um luto que, quando não é suportado, traz a depressão em seu bojo; casais se mantêm em relações abusivas; empresas se tornam corruptas; as sociedades são levadas à opções por projetos políticos desastrosos.
Talvez o maior dano seja aquele provocado por quem se espera proteção. Após uma experiência potencialmente traumatizante, o suposto protetor desmente o fato, ou desqualifica o sofrimento. Não, não aconteceu a sedução, o estupro, o assédio, a violência física, o abuso de autoridade, a postura racista, o genocídio. Na condição de extrema vulnerabilidade, as pessoas têm que escolher se acreditam em suas próprias percepções, ameaçando o vínculo de proteção, ou se põem em dúvida suas experiências e criam uma cripta dentro de si mesmos, de forma a manter o vínculo. Pior ainda quando são ameaçadas se insistirem em manter a sua versão dos fatos.
Bion, psicanalista britânico, dizia que a verdade é o alimento para nosso psiquismo. Temos aversão à verdade. Temos medo dela, e em muitos casos não somos capazes de suportá-la. Por isso, nos alerta: a verdade, sem compaixão, é crueldade.
Mas, será que podemos viver sem mentiras, sem ilusões?
Não posso deixar de comentar que há um tanto de mentira nas ilusões que nos acalantam, no brincar da criança, na literatura, cinema, teatro, nas artes em geral, e, segundo Freud, nas religiões.
Quando nós sabemos que é “de mentirinha”, fazemos uma concessão, a mesma que fazemos com nossos devaneios. Há uma importante função de nos auxiliar a representar a realidade e aumentar a nossa capacidade de lidar com ela. É o que nos permite, por aproximação, dizer o indizível, representar o irrepresentável.
Fico um pouco desconcertada ao me dar conta de que o que expus neste artigo se mostrou como pouco orientador e pouco preciso. Intuímos que há diferenças na intencionalidade daquele que mente. Um psicopata que mente, sem nenhuma consideração pelos outros, não é como uma mãe que diz ao filho pequeno que a dor vai passar com o seu beijo. A intenção não é a mesma, mas ambos mentem, favorecem a ilusão.
A mentira também poderia ser avaliada pelo dano que causa: o beijo da mãe pode ter efeito placebo e, por sugestão, reduzir a dor. A criança terá, quando for capaz disso, e ajudada por sua mãe, que ir se desiludindo com a imagem idealizada que fez de sua mãe, e reconhecer seus limites.
A mentira diante da CPI pode ser punida com a perda da liberdade; ela provoca um dano social por haver um contrato social que assim o define. A mentira sobre comer pernilongo, não. Mas isso não é uma regra. Em algumas famílias, a criança poderia ser punida por ter quebrado uma regra de relação importante.
Assim, para compreendermos a mentira, a ilusão e seus efeitos, devemos nos adentrar em um campo complexo de desenvolvimento e maturidade emocional, de tolerância à dor psíquica, de pactos intersubjetivos e sociais, de desenvolvimento moral, de criação da cultura, de regras, de tabus e de leis. Espero não tê-los iludido com minha proposição de me dedicar a este tema, confessando que foi apenas uma aproximação.