Os fantasmas dos mortos nos cobram a aprender com a experiência

“Dentro de uma sociedade desigual todo mundo é desgraçado.”

 Carolina Maria de Jesus

Em 2011, um grupo multidisciplinar de profissionais deslocou-se de São Paulo a Nova Friburgo para prestar assistência aos atingido pelos deslizamentos de terra e inundações que ocorreram na região, através do então existente Instituto Karunã. Não seria a primeira vez que eu e alguns colegas atuávamos em desastres como psicólogos.

Ao escrever esse texto, acredito que não falo apenas por mim, mas por várias pessoas que passaram por circunstâncias semelhantes, aquelas que viram de perto a destruição material e apreenderam os danos emocionais sofridos por todos os envolvidos nos desastres. Aquele que passa de helicóptero, ou que se mantém em palanques, ou gabinetes nessas ocasiões, não tem ideia do que é o sofrimento individual. São história de ferimentos, de quase-morte, de perdas múltiplas, de desespero, de confusão, de surtos, de ideação suicida, de culpa por sobreviver, de desamparo.

Nós, psicólogos, especialmente os especializados em Crises e Emergências, fomos treinados para aproximarmo-nos das mais profundas dores humanas, e a ouvir, escutar e ajudar a dar sentido àquilo do qual normalmente queremos fugir: o nosso profundo desamparo. Eu e meus colegas poderíamos descrever, por muito tempo, o inimaginável, e calar o indizível traumático dessas experiências, a espera de que algum dia pudéssemos partilhar o que testemunhamos. Esta é uma ocasião para tanto.

É com uma indignação que não cabe em mim que vejo se repetir em Petrópolis o que aconteceu há 11 anos. Sei muito bem que esse novo desastre é um entre tantos, mas vou me apropriar de seus traços particulares para representar o que é comum a todas essas situações. Nós, como povo, não aprendemos com a experiência. Repetimos quase que cegamente as experiências traumáticas que nos dividem entre vítimas e algozes; seja por negligência, seja por ações deliberadas de desrespeito à vida, seja por uma espécie de complexo de gafanhoto que nos assola desde 1500: aqueles que detém os recursos e meios buscando extrair tudo o que for possível, sem importar o rastro de destruição que deixam com sua passagem.

 Vivemos uma nova versão de senhores e escravos, entre genocidas e condenados ao descaso e à morte: os seres invisíveis, os vulneráveis, as pessoas-coisas. No meio disso, um batalhão de indivíduos que procuram desesperadamente ajudar àqueles com quem se identificam, cavando com as próprias mãos o solo que encobriu seus vizinhos, entrando na correnteza para salvar crianças arrastadas… Surgem voluntários e atores de todas as partes, plenos de boa vontade, alguns procurando uma forma de se sentirem bons, outros de se certificarem que não são eles que estão lá, destroçados. É como se tivéssemos lugares marcados nessa cena de repetição. Os mais ignóbeis são aqueles que ocupam o lugar de quem tem benefícios com essa desgraça coletiva, que desviam recursos, que fecham os olhos aos inúmeros estudos que tornam previsíveis e evitáveis toda essa destruição que assistimos.

Reza a lenda que homens se aproveitavam do isolamento de algumas famílias em Nova Friburgo e lhes vendiam água e alimentos a preços absurdos. Descobertos pelo BOPE, foram mortos. A sensação geral era de que a justiça tinha sido feita. Não foi justiça, foi vingança, disse a mim mesma quando percebi que me regozijava com a suposta ação do BOPE. Se colocarmos uma lente de aumento nesse mesmo tipo de ato encontramos, só como um exemplo entre inúmeros, o desvio de verba de R$4 bilhões pela Secretaria de Obras Estadual do Rio de Janeiro, que poderia ter evitado muitas mortes. Esse tipo de crime deveria ser tipificado como crime contra a humanidade e inafiançável por sua barbárie. Mas, como denuncia a música Haiti de Caetano Veloso e Gilberto Gil em outro contexto, neste também, grande número, os atingidos são “quase todos pretos, ou quase pretos de tão pobres e todos sabem como se tratam os pretos” e os pobres. Sempre a mesma população vulnerável!

Parece muito coerente com esse cenário vir a público o fato de que os descendentes da família real recebam até hoje “a taxa do Príncipe”, um imposto criado em 1847. Ninguém renuncia a seus privilégios, porque o horror é ser tragado pelo abismo da desigualdade social. Num mundo que se organiza entre casa grande e senzala, não há alternativa: se não se está em um lugar, está em outro. Penso que um terceiro, esse formado pelos solidários, tenha alguma novidade para trazer, uma pequena fagulha nessa escuridão. Ela não deve se extinguir na tarefa cumprida momentaneamente. Imagino a cena em que aquela pessoa que cavou a terra com as mãos para encontrar soterrados, na sequência grite: onde estão aqueles que deveriam estar aqui? Aqueles que enviam mantimentos e outros gêneros gritem: onde estavam aqueles que poderiam impedir o que acontece agora? Aqueles que tiveram suas casas destruídas: por que não temos como construir nossas casas em lugares seguros? E outros tantos gritando: onde estão os treinamentos de emergências, o que fizeram com os radares que indicariam as tempestades, onde estão as equipes de bombeiros para atender a todos? Onde estão as ações para modificar de vez essa repetição trágica? Por que ainda se mantém o foro privilegiado e outros tantos absurdos? Por que escolhemos nos calar, ou reclamar de forma impotente que nada nunca muda?

Depois de algumas experiências dando assistência psicológica aos atingidos, ouvi uma colega psicóloga dizer que nós enxugávamos gelo. Reagi mal a isso: insisti que trabalhávamos para que as pessoas não se mantivessem na compulsão à repetição, para que pudessem escapar das garras do trauma. Hoje, assistindo de longe o que acontece em Petrópolis tenho que reconhecer que, do ponto de vista coletivo, enxugamos gelo. E um grande mal-estar me consome.

Penso que nós que estivemos tantas vezes acolhendo as pessoas destroçadas emocionalmente, devemos dar voz ao que testemunhamos, denunciando a alienação em que vivemos. Assistimos como a um filme que se repete. É preciso muita capacidade mental para se aproximar de tanta dor sem sucumbir, sem se dessensibilizar, ou adoecer por trauma por empatia. É preciso muito apoio grupal para metabolizar tais excessos. Então, eu falo, nós falamos, nós gritamos, nós choramos até conseguirmos pensar. Até traçarmos planos para agirmos.

Acredito que muitos percebem que não se sentem confortáveis em ocupar o mesmo lugar e desempenhar o mesmo papel nessas cenas catastróficas que se repetem em nosso país. E, ao que tudo indica, com danos maiores ainda em função das mudanças climáticas.

Temos sempre duas opções, encarar a realidade e o que ela nos oferece de desagradável, ou nos evadirmos dela nos mantendo presos na repetição, na ilusão.” Não olhe para cima”, diz o título do filme, negue a realidade, fuja do que é dolorido para mergulhar na ilusão. Com certeza você vai encontrar uma coleção de pessoas que se congregam pela mesma ilusão. A minha foi acreditar que poderia salvar pessoas. Sei que demos o melhor de nós, a nossa habilidade técnica para auxiliar as pessoas a saírem do inferno emocional a que estavam presos. Mas, não salvamos ninguém, não temos esse poder. Estivemos disponíveis para sermos usados dentro de um limite posto por nós e delineado por cada um a quem demos assistência. Intervenção psicológica é interação entre pessoas, entre mentes. Assim, não posso alimentar a ilusão de que haverá um salvador da pátria.

Não é simples quebrar padrões e vislumbrar que há outras formas de fazemos parte de nossa coletividade. Difícil, mas necessário: anos de história culminam no presente, sempre.

Estamos em ano de eleição. Somos profundamente responsáveis por nossas escolhas. Somos responsáveis quando escolhemos saídas simplistas, quando nos deixamos arrastar por discursos apaixonados. Não se trata só da escolha de Presidente, mas de todos os que nos representam desde o síndico até o Senador. Não se trata apenas de representação, mas de não aceitar as pequenas corrupções, de não fazer parte delas, de não fechar os olhos para o que ocorre à nossa volta e em nós mesmos.

A única certeza que tenho é que para transformarmos nosso mundo precisamos olhar para as Petrópolis de nossa realidade material e reconhecer o impacto que nos causa, ou seja, qual lugar e qual função nos sentimos arrastados a executar nessa cena.  Sem essa consciência de nossa verdade pessoal não vamos aprender com a experiência, vamos repetir nossas escolhas, nossos atos, nossos votos, nossa história coletiva.

Brumadinho, Mariana, Nova Friburgo, Cubatão, Santa Catarina, Bahia, Minas, Manaus… São tantas e tantas mortes por desastres, por Covid, por descaso! A grande maioria delas evitáveis! E tanto dinheiro que limpa as mãos manchadas de sangue. Esses criminosos não são Shakespeareanos, não os vemos perseguidos e assombrados por fantasmas.

Então que sejamos nós Hamlets que não se conformam com os crimes cometidos e que escutam os fantasmas clamarem por justiça.

 

Os profissionais abaixo atuaram como voluntários em alguns dos desastres e emergências citados no texto e compartilham os sentimentos aqui manifestados por mim:.

 

Andrea Ferrari CRP-06/1109489

Beatriz Azevedo CRP-06/142572

Claudia Almeida D’Andretta Cruz, CRP 06/67.808

Claudia Valois CRP-06/100532

Edna Dias CRP-06/36355-6

Fabiana Silva CRP-06/122030

Gabriela Felipe Giantaglia CRP-0/113329

Gabriela Vaz Grzegorzewska – CRP-06/90778

Geiza Fernanda Antunes CRP 06/97930

Ingryd Abrão CRP-06/100829

Jane Hunnicutt Moreira Laub – CRP 106348

Julia Cattan CRP-06/82094

Loisanne Agnes Sennyey Sanches CRP 06/77576

Patricia Meireles Pimenta CRP-06/ 73885

Rose Aparecida Micheletti CRP-06/16749

 

In Memoriam Othon Vieira Neto, psicólogo que, junto com a autora, coordenou os atendimentos clínicos.

 

Prof.ª Dr.ª Claudia Maria Sodré Vieira

Psicóloga e Psicanalista

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