Chronos, Kairós e nossas Tribos  

Um de meus livros favoritos, que li inúmeras vezes e que relerei outras tantas, tendo em vista que sempre se revela uma obra renovada, é O encontro marcado (Sabino, 1956).  

No “prefácio” desse livro lemos um trecho de Hélio Pellegrino, em carta destinada a Fernando Sabino:

O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome (Sabino, 1956).

Tenho duas coisas a dizer sobre esse texto: a) obviamente, eu já poderia parar por aqui em minhas reflexões porque o Hélio, pelo visto, já sabia de tudo; e b) apesar de sua imensa sabedoria, acredito que, em nossa sociedade pós-moderna, não é apenas o homem (ou a mulher) que, quando jovem, se encontra só.  

Esse parece ser um mal que nos aflige a todos, em todas as idades e em diferentes graus. E talvez uma palavra que reflita melhor tal sentimento, que prescinde do “encontro”, não seja solidão, mas “pertencer” e ver reconhecida em nossas relações a vulnerabilidade ‒ que tem ou não a ver com a vida e as conexões “virtuais” que estamos “levando”.  

Evidencio esse sentimento de vulnerabilidade de maneira bastante única na execução de nosso papel como consultoria de idiomas nas avaliações orais realizadas com executivos de diversas multinacionais (perfil típico de nossos clientes, que também engloba aqueles profissionais que usam o idioma estrangeiro em suas relações de trabalho com o exterior) para verificar o progresso em seus respectivos programas de idiomas. A sinceridade permeia tal diálogo, pois o próprio sistema límbico impediria uma conversa de 15 minutos discutindo o dia a dia do trabalho e a vida em um idioma que não é o seu em um nível que não o avançado sem falar a verdade. Isso seria impossível! As pessoas são sinceras nessas avaliações. E, do outro lado, nosso papel como ouvintes, empáticos por natureza, consiste em uma avaliação ‒ que deve ser breve, em linha com o princípio teacher talking time (TTT). Precisamos ouvir e elaborar notas técnicas, enviadas sob a forma tanto de devolutiva construtiva quanto de plano de estudos 

Às vezes, brinco com os profissionais de recursos humanos (RH) que poderíamos oferecer uma “pesquisa de clima” a cada “lote” de testes. Sem qualquer ironia, escutamos muitas reflexões sobre vulnerabilidade nestes desafiadores dias que temos passado todos “juntos”.  

No livro Tribe: on homecoming and belonging (Junger, 2016), o autor, como jornalista de guerra ​cobrindo o conflito no Afeganistão, relata de modo particularmente perspicaz que muitos soldados não queriam voltar aos Estados Unidos da América (EUA) após seus turnos nas zonas de combate. Ele traz a observação de que uma das razões para que os veteranos de guerra norte-americanos sofram de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é o fato de que eles consideram difícil deixar essa “tribo” ‒ que se tornou sua família durante a guerra, colegas dos quais dependiam efetivamente em situações extremas, de vida ou morte. Tal “senso de comunidade” inexistia na vida de muitos deles antes da guerra e dificilmente existirá em sua “volta para casa”.  

O sociólogo francês Michel Maffesoli define as tribos (urbanas) como agrupamentos semiestruturados, constituídos predominantemente por pessoas que se aproximam devido à identificação comum com rituais e elementos da cultura que expressam valores e estilos de vida e lazer típicos, especialmente em determinado espaço-tempo, como, por exemplo, uma guerra ou, no nosso caso, uma pandemia. Ao longo de nossa vida, fazemos parte de várias tribos e uma particularidade delas é o caráter volátil de seus vínculos internos, o que torna essa fonte de experiências sociais compartilhadas muito rica, mas também perene, não permitindo que tiremos conclusões sobre o engajamento em projetos cooperativos de maior duração (Maffesoli, 2014). Essa perenidade e a consciência de que as coisas mudarão gera ansiedade.  

Nesse contexto, os executivos refletem sobre os laços que foram criados ou renovados com suas famílias e a participação mais intensa na vida de seus filhos ‒ surpresos, eles costumam me dizer que não os conheciam tão bem quanto pensavam… Falam dos verdadeiros amigos, daqueles que, apesar do distanciamento social, encontraram formas de fazerem-se presentes. E mencionam seus líderes e liderados com mais carinho do que antes.  

Tenho consciência de que essa não é a regra e não estou fazendo uma apologia das histórias boas de contar. Porém, um executivo, que conta com o investimento da empresa em seu treinamento, mostra-se alguém de potencial antes de chegar a nós. Esse é nosso nicho e essas são as “tribos” deles.  

Outro relato comum se refere à percepção do tempo e reflete, em grande medida, conceitos milenares que os gregos representavam em sua mitologia: “Kairós” (o tempo “qualitativo” ‒ ocasião certa, oportunidade) e “Chronos” (o tempo “quantitativo” ‒ físico e cronológico, os anos, os meses, os dias, as horas, os minutos e os segundos).  

Nas reflexões dos executivos, constatamos a experiência de respirar fundo e, durante essa pausa, decidir como e o que pode/deve ser mudado:  

  • O que preservar e do que abrir mão?  
  • Como conciliar os ganhos com as perdas?  

 

Na teologia, Kairós assume um senso de “maturidade” e cito, ainda, outra fonte de sabedoria tão antiga quanto contemporânea ‒ a Bíblia (Kohelet [Eclesiastes], n.d.):

Para cada coisa há uma estação e um tempo para cada propósito debaixo do céu: um tempo para nascer e um tempo para morrer; um tempo para plantar e um tempo para colher o que está plantado; um tempo para matar e um tempo para curar.

É hora de pensarmos nas curas ainda não viabilizadas por vacinas. 

Referências 

Junger, Sebastian. (2016). Tribe: on homecoming and belonging. New York, NY: Fourth Estate.

Kohelet. (n.d.). Chapter 3. Recuperado de https://www.chabad.org/library/bible_cdo/aid/16464/jewish/Chapter-3.htm

Maffesoli, Michel. (2014). O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Forense.

Sabino, Fernando. (1956). O encontro marcado. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. 

Prof.ª Me Sandra Monica Szwarc

Sócia-diretora da Trends & Business/ Fit4DBest

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