Pazuello, Eichmann e a Banalidade do Mal no Brasil
Hannah Arendt foi uma grande filosofa alemã. Como jornalista da prestigiada revista New Yorker cobriu o julgamento de Adolf Eichmann, um oficial da SS Nazista, responsável pela deportação (que levaria ao posterior extermínio) de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Arendt ficou impressionada com a forma serena, despreocupada, desprovida de culpa, do réu ao longo do julgamento. Isso a motivou a cunhar o termo “Banalidade do Mal”, mais tarde esmiuçado em seu livro Eichmann em Jerusalém. Ela viu no oficial nazista uma ausência de peso moral ou juízo crítico. Ele argumentou tranquilamente que não tinha feito mal algum porque “apenas cumpria ordens”, estava convicto disso. Em outros momentos, ele demonstrava preocupação com o aspecto da “eficiência” da operação para a organização nazista. Se tratava de um burocrata ao serviço do grupo ao qual pertencia. Missão dada é missão cumprida. O fato de milhares de mortes terem passado por sua “logística” não era algo para minimamente se preocupar.
Há alguns dias na pausa do almoço liguei a TV e comecei a assistir o depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello para a CPI da Covid. Vi uma pessoa com ímpeto, energia, convicto do que falava. Observando a linguagem corporal, não o via acuado ou desesperado, mas alguém inteiro falando com desenvoltura. Quando comecei a prestar atenção ao conteúdo, fiquei perplexo. Era uma sequência de mentiras escrachadas, confrontadas por documentos, vídeos etc., que desmentiam claramente o que ele defendia com afinco. Não entrarei no mérito das mentiras, porque não é meu objetivo aqui, sei que todo brasileiro de boa vontade – que não seja pré-iluminista – viu que a verdade praticamente não existiu em seu depoimento.
Voltei a olhar para sua linguagem corporal, acionando naturalmente uma habilidade que um consultor/coach em desenvolvimento humano acaba adquirindo com o passar dos anos: a percepção imediata, intuitiva (o que Malcom Gladwell explica em seu excelente livro Blink). Vi uma pessoa convencida de estar fazendo o certo, não consegui perceber ali (posso estar muito errado, é só uma hipótese) um psicopata ou um cara essencialmente mau, tipo Hitler, Bin Laden ou esses vereadores que torturam crianças de quatro anos ou mesmo alguns dos que conduzem nosso país hoje. Então, com este curto-circuito na minha cabeça, veio na hora a imagem de Adolf Eichmann. Eu vi o paralelo dos dois surgindo na minha frente. Foi tão forte que enviei uma mensagem por WhatsApp a uma pessoa muito próxima, explicando minha “tese”. Eu exclamava: “gente, o Eichmann voltou, depois de 60 anos!”. Dez minutos após meu áudio, o Senador Alessandro Vieira comparou o ex-ministro ao Oficial Nazista. Não acreditei! Era muita sincronicidade! Nem notei a polêmica que aquela fala criara na sala da CPI, fiquei impressionado com aquela tão improvável convergência de ideias entre duas pessoas tão distantes, espacialmente falando. Ao mesmo tempo reforçou minha impressão de que o ex-ministro não passava um grau de maldade que sinto em tantas outras pessoas, bem presentes na vida de nosso país hoje, a cada esquina. Então, o que era aquilo que eu via?
Para mim, o fenômeno Eichmann fez muito sentido para eu entender tudo aquilo. Só que este caso é mais absurdo ainda, porque se o oficial nazista disse claramente que obedeceu a ordens de outros, o ex-ministro disse que o Presidente da República não o obrigou a nada, outra evidente mentira, para quem acompanha toda essa novela há meses. Se Eichmann vivia para o “valor absoluto” da obediência, que justificava qualquer ato desde que fosse para cumprir a missão dada, o General também mostrou ter este valor (apesar de mentir também sobre isso em público); mas há outro maior para ele: o da lealdade ao chefe. Ele se cegou a todo o contexto ao seu redor, às consequências que seus atos geraram. E se preparou com afinco, com ajuda dos assessores de mídia training, para ser eficiente em continuar fiel à missão, ao chefe, ao exército, à pátria. Foi um técnico das palavras, da linguagem evasiva, ao mesmo tempo que se mostrava seguro, sabendo que mentia. Foi um sofista profissional! Mas por um “bem maior”. Sim, morreram mais de 450 mil pessoas, mas eram a pátria e a corporação que estavam em jogo. Ponto!
Pensei na tragédia que estamos vivendo, nas milhares de vidas ceifadas, algumas delas bem próximas a mim. Olhei para aquele teatro, para aquele pobre boçal na tela à minha frente, depois olhei em volta para ver se ouvia gritos de indignação por perto. Só ouvi silêncio. Concluí que meu amado país fora sequestrado pela Banalidade do Mal. Diante da tragédia, sigamos em frente com nossas vidas, vendo o telejornal e comendo pipoca em frente da TV para assistir a CPI (que está muito melhor que a Libertadores). Ainda ganhamos de bônus a cena de senadores se ofendendo e “chamando para brigar lá fora”. O Brasil está impotente para agir, somos uma multidão de isolados, burocratas do cotidiano, autômatos, perdemos a capacidade de indignação. Viramos vítimas do que Pierre Weil chamou de “Normose”: a patologia da normalidade. Mas o Big Brother e o Flamengo estão aí para fazer-nos felizes (sic).
Como foi possível chegarmos a este ponto? Onde ficou nosso desejo, nossa pulsão, nosso Eros? Onde perdemos a ponderação moral, o juízo entre o verdadeiro e falso, entre o bem e o mal? Fomos contaminados pela pandemia de Eichmann, burocratizamos a vida, seguimos em fileiras com a cabeça baixa vivendo um dia após o outro, banalizamos nossa vida, ficamos cegos, obedecendo ao ritmo da multidão, como ovelhas em rebanho. Por isso, a mentira reina, predominam as Fake News, prevalece a ideologia medieval que deu o palco para muitos dos principais líderes do país. Nossa voz emudeceu quando optamos pela banalização e a inércia da rotina de sobrevivência. Talvez tenha sido por isso que um pobre indigente ficou horas a fio deitado, morto, numa padaria de um bairro nobre da minha cidade, sem que ninguém tivesse feito nada. Muitos nem se deram conta de que ele estava ali. Estavam comprando pão quentinho. Eu me lembrei da música do Chico: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. 460 mil mortes, mas amanhã tem jogo ao vivo na TV, aí, sim, gritaremos com o gol… algo deu errado. A quem estamos obedecendo sem pensar, sentir ou querer? O que e quem anestesiou nossas vidas?
Aqui cabe a reveladora frase de John Lennon:
“Life is easy with eyes closed. Misunderstanding all you see”.
(créditos para meu amigo Felipe Cortoni)
Mas não quero terminar essa reflexão para baixo. Então vou falar de uma luz que conheci há alguns meses, nas mídias sociais e na TV: Edu Lyra, um dos maiores líderes do Brasil na atualidade (são tão poucos!!). Com sua organização Gerando Falcões está coordenando um ecossistema de dezenas de favelas brasileiras, dando comida a milhares de famintos, educando pessoas sem recursos em sua própria universidade, fomentando economias locais através de redes de empreendedorismo. Seu lema é fazer com que a pobreza vire peça de museu. E conseguirá! Apesar dessa multidão de medievais que nos cercam (e que pensei que tinham sumido do globo há décadas), ele conseguirá. Eu – talvez como um impulso para não continuar imobilizado pelo vírus da apatia – me inscrevi como voluntario desta ONG, preciso me imunizar com urgência. Quero sacudir essa inércia burocrática contagiante que faz da vida um universo insosso. Minha vacina são Edus Lyras, e alguns outros que decidiram viver e lutar pela verdade, pelo bem, com dados e fatos, conhecimento, e sobretudo com ações!
Que os deuses me ajudem a resistir!